JOSÉ SERRA

“Meu nonno, Steffano Serra saiu da Itália antes da Primeira Grande Guerra Mundial e foi para Buenos Aires. Lá conheceu sua esposa, então casada. Ela abandonou o marido e fugiu com ele para o Brasil.

Steffano, nascido em Corigliano, na região da Calábria – Itália, era analfabeto, comerciante de frutas no Mercado Municipal da Cantareira, dono de uma carroça puxada por burrinho, tocador de guitarra e cantador de stornello, num tom suplicante e numa linguagem incompreensível.

Meu pai, Francisco, também de Corigliano, veio da Itália como imigrante, em 1939, com 30 anos de idade. Ele havia brigado com o pai e decidira lutar na guerra civil espanhola como voluntário. Sua mãe, desesperada, persuadiu-o a mudar de rota e emigrar para o Brasil, onde já moravam dois de seus irmãos.

Meu pai também trabalhou no Mercado Municipal, onde tinha uma banca de frutas. Sempre preocupado com a aparência, trajava-se com esmero, com chapéu, gravata, sapatos engraxados e bigode aparado. Em 1941, casou-se com Serafina Chirico, também de origem calabresa, e alugaram uma casa na Villa da Mooca (que ainda existe), ao lado da Rua Carneiro Leão. Eram casinhas do começo do século, feitas pelas indústrias para abrigar famílias de operários.

Eu fui o único filho do casal e nasci nessa casa, em 19 de março de 1942, dia de S. José. Até os quatro anos de idade eu dormia no quarto de meus pais. Depois fui promovido para a sala. Às noites, com minha mãe, eu ouvia as novelas da Rádio São Paulo, principalmente um teatro de aventuras, que adaptava obras de Júlio Verne, Alexandre Dumas e muitos outros autores do gênero. Nas noites quentes íamos para a Rua Carneiro Leão, onde as pessoas ficavam sentadas nas cadeiras arrumadas nas portas das casas, conversando e cantando. Gostava de ouvir uma canção denominada “Uma strada nel bosco”, cantada por Gino Bechi e me lembro dela perfeitamente até hoje porque marcou uma fase importante de minha juventude.

Às vezes eu ficava num sofá da casa do vizinho vendo meu pai, tio, avô e amigos jogarem cartas – tre sette ou scopa -, todos fumando sem parar, blasfemando e trocando insultos. Lembro-me daquela mesa de jogo coberta por toda aquela fumaça quente esbranquiçada. Acredito que minha alergia ao cigarro venha dessa época.

Sr Francesco, pai de Serra em sua banca no Mercado Municipal
Serra com o pai e a mãe

Foi marcante na minha infância o parque infantil da Prefeitura, na Avenida do Estado, junto ao começo da Rua da Mooca. Eu o freqüentei dos quatro aos dez anos e idade. Era um local magnífico, as crianças brincavam à vontade; tinha espetáculos culturais, música, teatro. Esta área não existe mais. Deu lugar a Via Leste-Oeste. Ao lado, ficava outro paraíso, o Parque Shangai, um enorme parque de diversões.

Até os dez anos de idade, o quarteirão que rodeava a Villa era o centro do meu mundo. Na Rua da Mooca corriam os bondes e os ônibus. Na vila morava uma dúzia de crianças de idades próximas à minha. Na Carneiro Leão ficava a venda em que eu comprava doces e o bar Onze Batutas, que levava o nome do time de futebol da rua. As famílias da vizinhança eram em sua maioria italianas ou espanholas.

Ao lado da Villa ficava a escola onde eu viria a estudar. Um pouco mais adiante, o cinema Santo Antônio, onde todos os domingos eu ia assistir às chamadas matinês: dois filmes, desenho animado e fita em série, tudo numa só tarde. Durante a semana, à noite, ia com minha mãe, avó ou tias assistir a algum drama mexicano. Lá perto aprendi o alfabeto e a tabuada no Colégio Dom Bosco, onde, antes de entrar no ensino fundamental, fui alfabetizado. Na igreja da escola fiz a primeira comunhão e freqüentava a missa. Lá eu conheci o padre Benedito. Eu achava que ele era santo, pois vivia só para fazer o bem.

Essa época raramente havia violência. Quase não havia assaltos. A convivência entre os moradores era pacífica. Apesar do chão de paralelepípedos jogava-se – e muito – futebol, com bolas de borracha ou de meia.

Vila da Mooca
Turma do 1º ano do grupo escolar

A Segunda Guerra Mundial pegou parte de minha infância, fazendo-me ainda hoje ter fortes lembranças. Escutava ao lado de meu pai transmissões de programas italianos em ondas curtas, repleta de interferências, ruídos e assobios, que me assombravam.Era proibido escutar transmissões de países “inimigos”, de modo que meu pai ouvia o rádio no escuro, como se a escuridão abafasse os sons…

Quando tinha dez anos de idade meu pai comprou uma pequena casa no Alto da Mooca, nas proximidades da Igreja N.S. do Bom Conselho. Era o que se chamaria hoje de bairro da periferia: ruas sem calçamento, iluminação ou rede de esgotos. A casa era um pouco maior que a da Villa e ganhei um pequeno quarto com direito ao que eu mais queria: uma escrivaninha.

Nessa época eu ingressei no Colégio São Judas Tadeu, que inaugurava seu ginásio, com o professor Alberto Mesquita de Camargo e sua mulher, Dona Alzira. Os dois anos do São Judas foram os únicos que estudei em escola privada. Pesava no orçamento de meu pai e mudei-me, então, para o Ginásio Firmino de Proença, com direito a farda de brim amarelo e gravata azul-marinho.

Meus parentes contam que desde criança eu falava de política com eles. Por isso, diziam que quando eu crescesse iria ser político. Dia de eleições era dia de festa. Naquela época o voto era depositado por meio de cédulas entregues aos eleitores na rua. Eu cuidava de banquinha de distribuição de cédulas, organizada por cabos eleitorais. Era a chamada “boca de urna”, com direito a guaraná e sanduíche.

Comunhão de Serra
O craque Serra

Na adolescência eu ia sempre aos jogos do Palmeiras. Joguei, também, em alguns times de várzea. Melhorei um pouco meu futebol jogando na defesa, quando finalmente descobri que não era bom para driblar, mas para antecipar ou desarmar as jogadas dos adversários e bater faltas e pênaltis.

Em 1960 ingressei na Escola Politécnica da USP, quando iniciei na política na militância estudantil, até chegar a presidente da UNE – União Nacional dos Estudantes, em 1963, tornando-me um dos mais ativos lideres da esquerda brasileira. Com o golpe militar em 1964, abandonei o curso de engenharia e exilei-me no Chile, onde conheci Mônica Allende, com quem casei e tivemos dois filhos (Verônica e Luciano). Tornei-me mestre em economia pela Universidade do Chile (1972) e doutor em economia pela Cornell University, nos Estados Unidos (1977);

Trabalhei na Cepal – Comissão Econômica para a América Latina e Caribe e fui professor da Universidade do Chile durante o exílio. Com o início da abertura política, retornei ao Brasil em 1978 e dei aulas na Unicamp – Universidade de Campinas.

No governo Franco Montoro(1983-86) assumi o cargo de Secretario de Economia e Planejamento do Estado de São Paulo. Em 1986 elegi-me deputado federal pelo PMDB. Em 1990, já no PSDB, retornei a Câmara dos Deputados e em 1994 fui eleito senador. No ano seguinte assumi o Ministério do Planejamento, deixando o cargo em 1996. Em 1998, no governo de Fernando Henrique Cardoso assumi o Ministério da Saúde e em novembro de 2003 fui eleito por unanimidade presidente do PSDB. Em 2005 assumi o cargo de Prefeito da Cidade de São Paulo e em 2006 fui eleito Governador do Estado de São Paulo.

Embora não more mais na Mooca, retorno sempre a minha terra natal para visitar minha mãe e tias ou para saborear as delícias do Di Cunto, da Pizzaria São Pedro e do Don Carlini, meus locais prediletos no bairro.”

Colação de grau no antigo cientifico
Serra com a mãe, esposa e filho

Fontes, inclusive fotos : livro “O sonhador que faz” de Teodomiro Braga – Editora Record e diversas publicações de revistas e jornais.